segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Uma resposta ao americano que descobriu o nosso problema


Querido americano,

Esses dias circulou um texto seu explicando para nós, brasileiros, quais são os nossos problemas. Muitas pessoas republicaram o texto, afinal descobrimos o nosso problema. Da mesma maneira o que os americanos entraram em polvorosa essa semana quando descobriram que a Beyonce é negra.

Já dei a dica do que quero falar. Não dos nossos problemas brasileiros, mas de problemas em geral. Eu não sei quem é você,  mas sei que eu com meus problemas não tenho cara de escrever uma carta aberta aos americanos para falar dos problemas deles.

Nós brasileiros somos o problema. Você tem razão. Lição número de qualquer livro de auto-ajuda, afinal quem é a solução? 

Você diz que os nossos problemas estão na fundação da nossa sociedade. Eu diria que estão em todas as sociedades, ou fundações. Aqui, as pessoas acreditam que os pobres não lutam o suficiente. Bem, nem todos acreditam nisso, mas muitos. Talvez essas pessoas que acreditem nisso aqui são as mesmas que você conviveu no Brasil, a classe média do Leblon e do Jardins, ou seja, os manhatanites que circulam por Nova York sem nunca ter pisado no Queens ou Bronx.

O carro batido que você mencionou? Eu acredito que exista em inglês uma expressão chamada “hit and run”, não? Ela descreve acidentes no Brasil ou aqui mesmo?

Sobre as fotos na praia, eu te pergunto, querido americano que nos apontou nossos problemas. Kim Kardashian, autora da grande obra “Selfie” é brasileira? Será que esse modelo de indústria cultural de massa é nosso?

Sim, ser vaidoso não é uma ofensa no Brasil. “Vain” aqui, sim. Mas sabe o que eu percebi aqui? Nos Estados Unidos ser “ambitious” não é defeito. No Brasil ser “ambicioso” não é uma característica muito bem-vista. Sabe o que isso significa? Nada em especial, apenas que temos percepções culturais diferentes e que experienciamos tais diferença através da linguagem.

Brasileiros compram as coisas em 12 ou 14 pagamentos. Verdade. Americanos pagam tudo com cartão de crédito e depois quando a dívida aumenta, eles fazem um novo cartão de crédito e “roll over the debt”.

Vaidade não é felicidade, você tem razão. Você sabe qual é o único país do mundo com mais cirurgias plásticas que o Brasil? Os Estados Unidos.

Brasileiros esperamos. Esperamos demais. Estar uma hora atrasado é normal. Mas avaliar toda a cultura de um país através dos atrasos do relógio? Americanos são pontuais, quase sempre. E talvez, deixar um amigo esperando para “teach a lesson” me parece americano demais, sabia? Que lição é essa? Pontualidade? Será que eu preciso “ensinar uma lição” antes de irmos tomar uma cerveja?

Gostaria de propor que você discutisse a constituição americana. Será que é só a brasileira que precisa ser refeita. Nas suas palavras, it must be done. Quantas vezes você já leu a constituição brasileira? O que há nela que faz com que você, americano, acredite que seja fundamental uma mudança?

E enquanto falamos de constituição, podemos falar de impostos. Americanos de classe média pagam uma fortuna de impostos enquanto que os detentores de fortuna pagam muito pouco. E esses impostos não se convertem em direitos (que americanos chamam de benefícios. Não, americanos, saúde não é benefício, é direito). No Brasil, por mais problemas que existam, se eu cair na rua, há um hospital público em que eu possa ser levado. Mesmo com seguro médico eu paguei 295.54 dólares por uma limpeza de ouvido aqui na sua terra da prosperidade. 

E aproveitando o gancho dos impostos, que tal falar da prosperidade norte-americana que você menciona. De fato, um país rico. Um país que se auto-intitula "leader of the free world" e que tem os piores índices em educação e saúde entre os países desenvolvidos. 

 Ah, o jeitinho brasileiro? Sabe qual o problema dessa expressão? É o “brasileiro” nela. Nesses últimos sete anos nos Estados Unidos, eu tenho visto tantas vezes o jeitinho americano. Tantos exemplos de pessoas que não pagam impostos e têm casas enormes. Americanos que compram apartamento e mantém um outro “rent control apartment” para lucrar enquanto existe uma lista de espera de mais de dois anos para pessoas que realmente precisam disso. O jeitinho americano dos landlords de desligarem o aquecimento no inverno para economizar dinheiro. O jeitinho de contratar imigrantes como babás e empregadas para não ter que legalizar a situação dessas pessoas. E esses são só alguns exemplos do jeitinho americano de uma única cidade... Me parece que o jeitinho brasileiro só é um problema porque é brasileiro. E os outros jeitinhos? 

Sabe, querido americano, me parece que o verdadeiro problema brasileiro tenha sido copiar demais os americanos. Mas isso é só uma impressão. Eu não sou de apontar dedos dessa forma...

Por fim, todo país tem problema, toda cidade. Se decidimos morar fora da nossa ‘motherland’, a primeira lição é a humildade, que nós, brasileiros, temos de sobra e que vocês americanos não admiram muito (lembra do ‘vain’, ‘ambitious’?) Nós não sabemos mais ou melhor, sabemos diferente. E viver em outro país é uma constante ‘struggle’ de forças que se antagonizam diariamente. E rasgar o verbo com verdades e fatos (ainda que todos baseados em impressões pessoais) só soa arrogante. E aí te deixo uma lição de um brasileiro. Brasileiro não gosta de gente arrogante. Te ensino uma expressão: abaixa a bola. Seja feliz no Brasil como eu aprendi a ser feliz no teu país, apesar do jeitinho americano que enlouquece o meu jeitinho brasileiro.



P.S. Pelos meus cálculos este texto é lido em 8 minutos. No seu site, você diz que o seu deve ser lido em 11 minutos. Bem, oito minutos seriam suficientes para os americanos que não gostam de perder tempo.





segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Tempos Difíceis

Pensamentos escassos de um indivíduo em choque e sem saber muito bem como organizar essas ideias-lágrimas

Pensamento 1:
Semana difícil, não mais difícil que muitas outras que tivemos. Porém fica mais difícil quando tentamos medir a dor do outro e comparar com a nossa.
Sim, é fato que morre-se diariamente no Brasil o mesmo número de pessoas que morreram em Paris. É fato que há uma semana quase o mesmo número de Palestinos morreram e ninguém deu muita atenção. É fato que a barragem de Minas é, provavelmente, um dos maiores desertas ecológicos do Brasil. Assim como é fato que a Amazônia vive desastres ecológicos diários.
Tudo isso dói, cada um do seu jeito, e cada dor de uma maneira em cada pessoa.

Pensamento 2:
Hoje em tempos de internet, tudo pode e nada sai batido. Quem colocou a bandeira da França, foi xingado. Sim, a bandeira representa o estado francês e ao colocar a bandeira, talvez, estejamos de acordo com as palavras do Holande que diz 'estar em guerra'. Mas a bandeira também pode ter representado a dor daquela pessoa. Isso eu não vou medir. Que hoje é a da França, ano passado foi a do arco-íris. Símbolos.
Por um dia a bandeira da França foi símbolo de dor.

Pensamento 2.1
Estamos em guerra. Quando não estivemos? Quem mora nos Estados Unidos sabe que estamos em guerra há muitos anos. E quem mora no Brasil  sabe que a guerra interna mata mais que a Guerra do Iraque diariamente.
Não estamos em guerra. Nunca deixamos de estar em guerras. Muitas guerras. E entre todas as guerras, a nossa guerra pessoal para saber quem está certo.

Pensamento 2.2
Eu sei que estou certo. Você sabe que está. E ninguém erra.
Porém nessa briga entre o certo e o errado, há um tipo de perdedor: o que não tem voz. O que não tem voz pra declarar guerra. E ninguém quer declarar paz, eu acho.

Pensamento 3:
O francês não é o estado, assim como o judeu não é Israel, assim como o muçulmano não está em guerra com o ocidente. Estados fazem guerra, o povo morre. O soldado, o morador....

Pensamento 4:
Há uma coisa que não podemos deixar nunca de ter: Respeito pela vida. Postar vídeos pregando a morte de outras pessoas. Não. Postar vídeos culpando imigrantes por ataques terroristas, não. Postar algo criticando os mexicanos nos EUA sem pensar que você, brasileiro, neste país é também um imigrante, Não.

Pensamento 5:
Reveja os seus privilégios. Mesmo imigrante, tenho facilidades que muitos não têm. E uma delas é o acesso aos mais variados tipos de informação. Leia, releia e não poste. Respeite o ser humano.

Pensamento 6:
Estou em choque com esse vídeo que vi pregando a morte de outros.

Pensamento 7:
Nós, quase todos que aqui estamos, vamos dormir tranquilos. Sem medo que alguma dessas guerras nos afetem, pelo menos não agora. Alguns ainda estão sob o efeito dos ataques em Paris, Beirute.... Alguns sob os efeitos de alguma bala perdida. Outros sob o medo de uma guerra que terminou há mais de dez anos.

Pensamento 8:
Se você não preza pela vida, repense. Lembre-se daquelas frases sem-sentido que repetimos a torta e a direita. Somos um, A vida vale ouro, blá, blá...

Pensamento 9
Do alto do nosso privilégio, somos capazes de atos insensíveis, preconceituosos e criminosos. Isso é o mais assustador.

Pensamento 10:
Porque enquanto não sou poeta:


Quem cala sobre teu corpo

Consente na tua morte

Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Que a bala riscou no peito
Quem cala morre contigo
Mais morto que estás agora
Relógio no chão da praça
Batendo, avisando a hora
Que a raiva traçou no tempo
No incêndio repetido
O brilho do teu cabelo


Milton Nascimento


Vou tentar dormir, comer, ler, rezar, meditar, fazer algo porque aqui onde eu estou ainda é dia 16 de novembro de 2015, mais um dia que estivemos em guerra e muitos morreram. Eu, por sorte e por privilégio, não.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

De fora é mais bonito?

Como falar do Brasil?

Essa questão me perturba quase que diariamente. Afinal sou professor de língua e culturas brasileiras. Falo de literatura, de política, de arte... Deixo claro meu ponto de vista. Não é segredo para os meus alunos que me alinho à esquerda, que acredito na igualdade de gênero e que acredito que o Brasil tem sérios problemas raciais mal resolvidos.

Ano passado em uma aula que estrangeiros e brasileiros se misturam (ou sentam cada um de um lado da classe...), um/a estudante brasileiro/a me perguntou porque eu não dava nada mais positivo sobre o Brasil, que imagem que eles iam ter? Eu não faço quadro decorativo e nem escrevo poesia ufanista. Abro a discussão, se essa pessoa do Brasil se sentiu incomodada, para mim é um ótimo sinal. Afinal, estamos começando a rever nossos mitos.

A questão racial é uma das maiores fantasias entre os brasileiros aqui fora. Recentemente meus alunos fizeram um projeto em que tinham que entrevistar brasileiros trabalhando em Nova York. Em mais de uma entrevista surgiu a questão de raça e em quase todas, os entrevistados - Brasileiros - disseram que os problemas raciais no Brasil não são tão sérios porque somos um país miscigenado....

Ah as delícias de ser branco num país miscigenado... ou como dizem aqui "white people problems"....

Me impressiona como a imagem-mito da democracia racial ainda prevalece entre nós. Muitas vezes eu acho que isso é uma fantasia que criamos para não ter que lidar com essa questão.
Como podemos ser uma democracia racial? Um breve olhar no censo já mostra o quão longe de tal projeto estamos. Meus alunos, em uma aula, com a ajuda de dois gráficos, conseguem perceber essas questões. Porém, ao falar com brasileiros, insistimos em negar o óbvio.

Pois depois  das entrevistas, uma das alunas, me perguntou se era verdade o que o entrevistado havia dito, "somos uma país miscigenado". No mesmo dia havia saído uma notícia dizendo que negros ganham me média 47% menos que os brancos. Respondi mandando para ela a notícia. Essa mesma aluna me disse que achava estranho o comentário do entrevistado pois todos os estudantes brasileiros em Columbia são brancos... Inclusive o próprio entrevistado. Sim, ela está certa. Como somos um país miscigenado se todos os estudantes aqui são brancos? Se identificam como brancos, apesar de muitos não serem vistos como brancos (mas isso dará um próximo post).

Cada vez que volto para o Brasil, não permaneço o mesmo.

Há dois anos, estive em São Paulo com um colega (a colored person nos padrões americanos) e o levei a uma festa de médicos (um grupo de médicos que um outro amigo me convidou). O seu primeiro comentário foi "a única pessoa negra aqui é o garçom". Verdade, quantos desses médicos não passaram os seus anos na faculdade sem perceber isso! E quantos seguem nos seus encontros secretos sem perceber isso?

Hoje me choca a brancura dos shoppings de São Paulo, dos restaurantes da cidade... Algo que - MEA CULPA - passei anos sem perceber ou querer perceber. Como acreditamos na democracia racial e na miscigenação, preferimos não confrontar fatos como eu não ter estudado com negros no ensino médio. Ou ainda hoje em escolas particulares de São Paulo não existirem crianças negras. Ou na faculdade, na USP, quase não ter conhecido negros. Ou ir a um restaurante no Jardins e o único negro ser um gringo. Ou encontrar com meus amigos em um bar da Vila Madalena e não ver negros ao redor...

Eu sei que tem muita gente que vai me criticar, me chamar de americanizado, de exagerado... Eu respondo com a seguinte estatística (pois dizem que as pessoas gostam de números): menos de 20% da população americana se declara negra. Mais da metade no Brasil. Vamos assistir TV no horário nobre? I rest my case...

Mais um argumento: Como podemos ser um país sem preconceito se vivenciamos o que aconteceu recentemente com a Taís Araújo? Fiquemos entre as celebridades, para não ter que entrarmos na questão social, na maioria dos assassinados, na maioria da população carcerária, na maioria das pessoas sem emprego....

Não sei se aqui é melhor ou pior, mas vejo que, pelo menos, em cidades como Nova York as pessoas estão mais atentas à questão racial (e de gênero e LGBT). Meus alunos não saem indiferentes a essas questões. E isso é um privilégio da educação. Isso é um privilégio de poder falar sobre o assunto.

Por mais problemas que existam nos Estados Unidos, um negro assassinado pela polícia ainda é notícia. No Brasil?

Os atuais absurdos da internet, essas baixarias homofóbicas, transfóbicas, racistas, misóginas só mostram que é preciso discutir muito sobre o tema. MUITO. Assumirmos que somos racistas e que não podemos deixar que essas pessoas desfilem seus preconceitos e saiam incólumes.

E por fim, não somos todos Tais, não somos todos negros. Mas ser branco não me faz indiferente ao racismo. É preciso parar de fingir que os problemas não são da maioria. Em um país de maioria negra, o racismo afeta a maioria.

Além do hashtag como anda o seu cotidiano privilegiado?



sábado, 24 de outubro de 2015

Homem, Abra os olhos, você é machista demais...

Há muitas formas de trauma no que diz respeito ao assédio, pedofilia, e estupro. Há muitas maneiras de lidar com tais eventos. O assédio infantil marca o corpo adulto de muitas formas e quase sempre são demonstradas através da dor, vergonha ou desapoderamento do próprio corpo. Porém há casos em que o silêncio, o esquecimento ou até mesmo a transformação do trauma em fantasia são recursos comuns quando temos que lidar com essas situações (No cinema, "O labirinto do fauno", e "Dorm" que acaba de sair nos cinemas falam sobre isso).

Os comentários dos homens declarando o seu primeiro assédio com as tias, empregadas, vizinhas e afins apesar de  revelarem em um primeiro nível que eles cresceram saudáveis, mostram em uma rápida segunda análise que tais atos os transformaram em homens insensibilizados. E essa insensibilidade (ou escrotidão mesmo) é, também, uma forma de lidar com o trauma.

O corpo infantil é vulnerável não importa o gênero. Esses homens que tiveram a coragem de falar dos seus assédios só mostram que desde criança aprenderam que a mulher é objeto, seja criança ou adulta. Esses relatos de assédio feito por homens confirmam o assédio sofrido por mulheres, a verdadeira razão por trás do #PrimeiroAssedio. Esses comentários masculinos confirmam a posição que as mulheres recebem: sempre vítimas por não terem agência sexual. O homem, mesmo quando assediado, se traveste de herói para não ter que entender ou lidar com a vulnerabilidade de seu corpo infantil.

Também o fato de eles acharem normal o que aconteceu na infância só confirma o pensamento machista que coloca a mulher em situação inferior: Não importa a idade, a mulher serve para os prazeres sexuais do homem. Um menino ser assediado por uma mulher adulta não é crime, é aprendizado. Pois eu pergunto a esses homens experientes que tiveram seus pintos 'mamados' por mulheres (vejam os comentários nesta notícia), como seria ter sido mamado por outro homem? Se o aprendizado sexual foi através do prazer do sexo oral, a experiência seria a mesma se tivesse sido com um homem? Pergunto também para o homem que tinha uma vizinha que 'batia uma pra ele', e se fosse o vizinho?

Achar que uma mulher mais velha não assedia é entender que a mulher não tem agência sexual, é reverter o quadro entre assediado e assediador. Mulher pode ser assediada porque deve prazer ao homem e mulher deve assediar para ensinar o homem a ter prazer. De qualquer maneira, é nojento.

Tal insensibilidade resvala na falta de empatia (um dos primeiro indícios de sociopatia), não entender o trauma alheio, não entender o que é passar a vida sendo assediada, diminuída e objetificada. Eu não tenho como falar da experiência feminina, mas há muitos relatos de jovem afeminados que passam por situações parecidas, meninos que são tratados como mulheres e têm seus corpos vilificados nas escolas e em outros espaços públicos. Tal comportamento, que normalmente é gerado por homens, confirma o assédio feminino. Mais uma vez, a mulher, em espaço público ou privado é objeto.

Esses homens assediados são provavelmente os que assediam as crianças hoje, que acham que podem falar em sexo com a Valentina, uma menina de doze anos. E que podem tocar os peitos de outras mulheres na rua. E isso, homens, é resultado de trauma. Assim como em "O labirinto do fauno", vocês transformaram o trauma em uma linda fantasia colorida. Porém na sua fantasia, vocês se transformaram nos monstros que acham que toda mulher é objeto, que toda mulher está aqui para 'bater uma pra você'. Porém quando vocês abrirem os olhos vão ver um monstro retorcido dentro de vocês mesmos.

Você, homem que foi tocado por mulheres mais velhas, foi vítima de assédio. Mas você é vítima hoje não por ter que lidar com a sua dor de ter passado a vida tendo seu corpo aberto nas ruas. Você é vítima por ter-se tornado insensível ao trauma do outro. E por não querer ver que é você que perpetua esses comportamentos.

Abram os olhos, entendam a dor alheia e aproveitem para, quem sabe, entender o próprio corpo. Vocês não são heróis, são vítimas também. Apenas aprenderam desde cedo que o corpo masculino não pode ser violado (a não ser se for por outro homem). Essas mulheres que estão falando sobre o #PrimeiroAssédio estão abrindo caminho para entendermos que há limites na nossa convivência social. Esse discurso não pode e não vai ser silenciado pela vergonha que vocês estão tentando impor nelas. Há séculos que vocês, homens machistas, fazem isso, usam a vergonha para silenciar a mulher, para manter o seu espaço privilegiado de detentor e provedor de prazer. A verdade, homem machista, é que você é capaz de muito pouco prazer, assédio não dá tesão.






segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Além da saudade

Muito se fala de como saudade é uma palavra única, que não se traduz em outras línguas. Saudade sempre aparece em listas das dez palavras mais difíceis de traduzir.

E é verdade, a saudade é nossa. Difícil de traduzir, difícil de explicar em aula, mas gostoso de falar. Eu adoro falar de saudade em aula. E ir tirando explicações dos alunos. Uma vez um aluno disse em aula, "só sente saudade quem esteve no Brasil (Desculpem, companheiros lusófonos, mas a saudade é de todos nós)." Recentemente um aluno americano que morou em Portugal disse que os portugueses acham que a saudade é só deles.

Eu me divirto quando os alunos querem dizer "saúde" e dizem "saudade" quando alguém espirra na aula. "Atchim", "Saudade". E eles perguntam, mas o que é saudade? Eu tenho a impressão de que a saudade entra discretamente no corpo daqueles que começam a aprender português e fica lá adormecida esperando o momento certo de aparecer.

Só que para quem está fora do Brasil, a saudade é só o começo. Vivendo fora do Brasil, muitas outras palavras vão aparecendo que não conseguimos traduzir. Saudade é a clássica, a que perturba os tradutores, a mais poética, mas há muitas outras! Há palavras que não conseguimos achar uma correspondência em inglês e eu fico tentando entender
com meus alunos. Ou tentando achar alguma palavra em inglês que explique aquele momento.

A minha favorita entre as que não consigo traduzir é chato e chatice. Mas não é só dizer que filme 'chato', tem que pensar naquela entonação que a gente usa quando fala que alguém é 'chato'. A tradução literal é 'annoying', mas como muitas palavras a tradução literal não explica a nossa intonação no 'chato'. Sempre me vem à cabeça o Vlad de "Vamp" chamando a Natasha, de 'Nachata' dizendo "chata, chatinha...."
Lembra das broncas dos nossos pais? Que chato...... Ou daquela aula chata? Então, como explicar?

A outra palavra é frescura. Sabe quando você implica que o arroz veio em cima do feijão e você queria ao contrário? "Frescura".... Ou quando você não quer que entrem na sua casa de sapato? Ou quando você detesta comer em pé no meio da rua? Quando você quer comer uma pizza, mas vê sujeira no chão da pizzaria? "Frescura" E aí? O que dizer em inglês?

"Que fresco você, não?"

Puta aparece com frequência nas aulas. Como explicar uma 'puta festa', ou então que você é um puta cara legal'? Uma vez eu falei em aula, "'é um puta filme". Silêncio. Uma aluna latino-americana perguntou, finalmente, "puta?" Foi nessa aula que eu percebi que durante semestres alguns alunos saíram das aulas sem entender do que eu falava. "Sim, puta pode ser usada como algo bom, 'um puta filme'". E nessa mesma aula, um aluno carioca disse que essa coisa de 'puta festa' é coisa de paulista e que ele achava engraçado, mas não fazia muito sentido. Ok, meu....

Entre tantas palavras e momentos, a mais gostosa é gostoso. Tanto pra comida quanto pra gente. Eu adoro explicar os sentidos de gostoso. Essa nossa vontade antropofágica....
Os alunos não acham estranho quando falamos de comida. Mas eles enlouquecem quando uma situação é gostosa. Sabe? Aí o cérebro internacional não processa.  Sabe aquela sensação gostosa de ficar deitado na grama do parque no final do dia? Não é 'relaxing', não. Não é relaxante, é gostoso mesmo. É gostoso pra caramba.

E uma aluna me perguntou, "como uma palavra pode ser gostosa?" Dá-lhe Oliver Sacks neles!



Outro dia apareceu a palavra nojento em aula. Explicar no sentido de 'ai que nojo', ok. That's gross, disgusting'. Mas e aquele pessoa nojentinha? Fresquinha? Chatinha? Só com personagem de televisão mesmo. E não, não há uma palavra para essas pessoas que fazem cara de nojinho quando entram em restaurante do centro da cidade, ou quando pensam em andar de metrô em São Paulo, ou quando imaginam uma coxinha-creme. Essas pessoas nojentinhas e fresquinhas ficam sem tradução ainda que existam milhares delas espalhadas por Nova York (e muitas dessas pessoas falam português mesmo).

Outra coisa que só sente em português. Aflição. Quando passam a mão em veludo e você morre de aflição (eu, pelo menos). Cada um com a sua.... Mas aqui, não se diz "ai, que aflição". Talvez sejamos mais frescos mesmo. Ou será que sou eu que um fresco nojentinho cheio de aflições?

Essas palavras todas estão na pele, no sentir. E acho que por acabar de ler a autobiografia do Sacks essas ideias de sentir, confundir, foram se formando na minha cabeça. Fui da saudade pro Oliver Sacks, pro Milton e acabei assistindo de novo "Dona Flor e seus dois maridos", pensando nessas situações-traduções.

E o que será que é isso que dá dentro da gente?
É saudade, aflição, gostosura, chatice... é a gente mesmo. É língua.
É a nossa língua que falta todos os dias no meio da outra língua. E que, às vezes, complementa uma terceira língua. É assim que a gente vive fora, faltando palavras o tempo todo. Observando movimentos para entender como se faz, como se é. E ver que mesmo quando a língua falta, o corpo responde. E já no aperto de mão, sabemos que não viemos do mesmo lugar, mas a mão abre espaço para que a gente se entenda.


P.S. Essas ideias todas merecem um texto com as situações que passamos com o espanhol. Estar em departamentos de 'espanhol e português' sendo minoria entre os hipano-hablantes que veem de mais de vinte países é 'rico' . Se entre eles já há confusão, imagine quando colocamos um sambinha no tango-merengue-salsa deles.....

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Metrô em Nova York


Com exceção dos paulistanos que acham que metrô tem que sair da porta de casa e parar na porta do trabalho com saída coberta para os dias de chuva, o metrô é o transporte favorito dos habitantes das grandes cidades. Todo mundo usa, todo mundo aprova e todo mundo reclama.

O metrô em Nova York é uma boa representação da cidade, para o bem e para o mal.

É diverso, tem gente de todos os tipos, religiões, cores, idades, classes sociais.... É a Nova York dos filmes e das propagandas – uma cidade para todos. Para quem vem de fora parece que é rápido, eficiente, quase nunca está cheio... O marketing do cinema e da televisão realmente funciona. Porém é num metrô feio, sujo, fedido que a maioria das pessoas passa o dia indo e voltando.

Raros momentos de metrô vazio e limpo.
É também no metrô que as pessoas ficam duas horas ou mais por dia para chegar em casa, porque a maioria desses todos não tem condições de morar nas partes nobres (aquelas que aparecem nos filmes).

E também é no metrô que as pessoas mostram a sua cara. A má vontade, a birra, o mal-humor, a chatice, a grosseria, e especialmente o individualismo. As pessoas não se levantam para os mais velhos, para as grávidas, para ninguém. E quando você se levanta a primeira reação do idoso é medo de um possível ataque. Gentileza, aqui, gera susto.

Ontem eu me levantei para um homem com uma criança de colo e duas pessoas além do pai com o filho me agradeceram. Ser gentil é tão raro que te eleva a posição de mártir no metrô de Nova York.

As pessoas gostam de ser impacientes com os outros. Há um prazer nova-iorquino em ser grosso com turistas, como se eles tirassem o espaço de quem ganhou a honra de morar no reino em que Seinfeld é um rei bobo-da-corte. Se você precisa olhar o mapa das linhas de metrô (que são muitas) a pessoa sentada na frente do mapa não vai se mexer ou vai sair resmungando como se fosse um ataque ao seu espaço pessoal.

As pessoas não veem problema em carregar a mochila gigante nas costas, beber seu café gigante, ler seu jornal gigante e ocupar o espaço de duas pessoas. Afinal, este é um país livre e somos cidadãos, não?

Há linhas em que pessoas brigam pelos assentos, gritam, às vezes a ponto de violência física. Pessoas jovens, saudáveis se empurram, se xingam em línguas. As pessoas comem, cospem, escarram, jogam lixo no chão, falam alta, cortam as unhas...

Como não seria diferente, os homens exercem seu machismo em todas as instâncias. Sentado ou em pé. Em todas as linhas os homens ocupam dois assentos com seu saco gigantesco que impossibilita fecharem as pernas. E não se mexem, é um direito deles. Saibam disso.

E o mais triste é observar os comentários racistas das pessoas em relação aos usuários do metrô. Os brancos, súditos de Seinfeld e Carrie Bradshaw se comportam muito bem no metrô, os moradores de Manhattan são os usuários perfeitos. Aqueles que transitam entre a 96 e a 14. O problema são os outros. Sempre os outros, os chineses, os negros, os pobres, os adolescentes negros... esses não têm educação. Racismo disfarçado de consciência de transporte público. Basta andar um pouco que percebemos que a falta de educação não é racial ou étnica, é nova-iorquina.

Ser grosso é o prazer de quem mora aqui. Esquecer que existe alguém ao seu lado é característica e o metrô é a representação pública do individualismo nova-iorquino. Os homens de terno e gravata saem andando com pressa como se já tivessem perdido seu primeiro milhão do dia, as mulheres de meia-calça e tênis saem correndo porque precisam ganhar aquele milhão perdido.


Ninguém perdoa. Ninguém se permite um olhar atendo ao indivíduo do lado. No metrô nova-iorquino ser minimamente educado te faz um ser elevado. É um metrô que transforma em raridade o que deveria ser senso comum: educação.