E é verdade, a saudade é nossa. Difícil de traduzir, difícil de explicar em aula, mas gostoso de falar. Eu adoro falar de saudade em aula. E ir tirando explicações dos alunos. Uma vez um aluno disse em aula, "só sente saudade quem esteve no Brasil (Desculpem, companheiros lusófonos, mas a saudade é de todos nós)." Recentemente um aluno americano que morou em Portugal disse que os portugueses acham que a saudade é só deles.
Eu me divirto quando os alunos querem dizer "saúde" e dizem "saudade" quando alguém espirra na aula. "Atchim", "Saudade". E eles perguntam, mas o que é saudade? Eu tenho a impressão de que a saudade entra discretamente no corpo daqueles que começam a aprender português e fica lá adormecida esperando o momento certo de aparecer.
Só que para quem está fora do Brasil, a saudade é só o começo. Vivendo fora do Brasil, muitas outras palavras vão aparecendo que não conseguimos traduzir. Saudade é a clássica, a que perturba os tradutores, a mais poética, mas há muitas outras! Há palavras que não conseguimos achar uma correspondência em inglês e eu fico tentando entender
com meus alunos. Ou tentando achar alguma palavra em inglês que explique aquele momento.
A minha favorita entre as que não consigo traduzir é chato e chatice. Mas não é só dizer que filme 'chato', tem que pensar naquela entonação que a gente usa quando fala que alguém é 'chato'. A tradução literal é 'annoying', mas como muitas palavras a tradução literal não explica a nossa intonação no 'chato'. Sempre me vem à cabeça o Vlad de "Vamp" chamando a Natasha, de 'Nachata' dizendo "chata, chatinha...."
Lembra das broncas dos nossos pais? Que chato...... Ou daquela aula chata? Então, como explicar?
A outra palavra é frescura. Sabe quando você implica que o arroz veio em cima do feijão e você queria ao contrário? "Frescura".... Ou quando você não quer que entrem na sua casa de sapato? Ou quando você detesta comer em pé no meio da rua? Quando você quer comer uma pizza, mas vê sujeira no chão da pizzaria? "Frescura" E aí? O que dizer em inglês?
"Que fresco você, não?"
Puta aparece com frequência nas aulas. Como explicar uma 'puta festa', ou então que você é um puta cara legal'? Uma vez eu falei em aula, "'é um puta filme". Silêncio. Uma aluna latino-americana perguntou, finalmente, "puta?" Foi nessa aula que eu percebi que durante semestres alguns alunos saíram das aulas sem entender do que eu falava. "Sim, puta pode ser usada como algo bom, 'um puta filme'". E nessa mesma aula, um aluno carioca disse que essa coisa de 'puta festa' é coisa de paulista e que ele achava engraçado, mas não fazia muito sentido. Ok, meu....
Entre tantas palavras e momentos, a mais gostosa é gostoso. Tanto pra comida quanto pra gente. Eu adoro explicar os sentidos de gostoso. Essa nossa vontade antropofágica....
Os alunos não acham estranho quando falamos de comida. Mas eles enlouquecem quando uma situação é gostosa. Sabe? Aí o cérebro internacional não processa. Sabe aquela sensação gostosa de ficar deitado na grama do parque no final do dia? Não é 'relaxing', não. Não é relaxante, é gostoso mesmo. É gostoso pra caramba.
E uma aluna me perguntou, "como uma palavra pode ser gostosa?" Dá-lhe Oliver Sacks neles!
Outro dia apareceu a palavra nojento em aula. Explicar no sentido de 'ai que nojo', ok. That's gross, disgusting'. Mas e aquele pessoa nojentinha? Fresquinha? Chatinha? Só com personagem de televisão mesmo. E não, não há uma palavra para essas pessoas que fazem cara de nojinho quando entram em restaurante do centro da cidade, ou quando pensam em andar de metrô em São Paulo, ou quando imaginam uma coxinha-creme. Essas pessoas nojentinhas e fresquinhas ficam sem tradução ainda que existam milhares delas espalhadas por Nova York (e muitas dessas pessoas falam português mesmo).
Outra coisa que só sente em português. Aflição. Quando passam a mão em veludo e você morre de aflição (eu, pelo menos). Cada um com a sua.... Mas aqui, não se diz "ai, que aflição". Talvez sejamos mais frescos mesmo. Ou será que sou eu que um fresco nojentinho cheio de aflições?
Essas palavras todas estão na pele, no sentir. E acho que por acabar de ler a autobiografia do Sacks essas ideias de sentir, confundir, foram se formando na minha cabeça. Fui da saudade pro Oliver Sacks, pro Milton e acabei assistindo de novo "Dona Flor e seus dois maridos", pensando nessas situações-traduções.
E o que será que é isso que dá dentro da gente?
É saudade, aflição, gostosura, chatice... é a gente mesmo. É língua.
É a nossa língua que falta todos os dias no meio da outra língua. E que, às vezes, complementa uma terceira língua. É assim que a gente vive fora, faltando palavras o tempo todo. Observando movimentos para entender como se faz, como se é. E ver que mesmo quando a língua falta, o corpo responde. E já no aperto de mão, sabemos que não viemos do mesmo lugar, mas a mão abre espaço para que a gente se entenda.
P.S. Essas ideias todas merecem um texto com as situações que passamos com o espanhol. Estar em departamentos de 'espanhol e português' sendo minoria entre os hipano-hablantes que veem de mais de vinte países é 'rico' . Se entre eles já há confusão, imagine quando colocamos um sambinha no tango-merengue-salsa deles.....
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