sábado, 24 de outubro de 2015

Homem, Abra os olhos, você é machista demais...

Há muitas formas de trauma no que diz respeito ao assédio, pedofilia, e estupro. Há muitas maneiras de lidar com tais eventos. O assédio infantil marca o corpo adulto de muitas formas e quase sempre são demonstradas através da dor, vergonha ou desapoderamento do próprio corpo. Porém há casos em que o silêncio, o esquecimento ou até mesmo a transformação do trauma em fantasia são recursos comuns quando temos que lidar com essas situações (No cinema, "O labirinto do fauno", e "Dorm" que acaba de sair nos cinemas falam sobre isso).

Os comentários dos homens declarando o seu primeiro assédio com as tias, empregadas, vizinhas e afins apesar de  revelarem em um primeiro nível que eles cresceram saudáveis, mostram em uma rápida segunda análise que tais atos os transformaram em homens insensibilizados. E essa insensibilidade (ou escrotidão mesmo) é, também, uma forma de lidar com o trauma.

O corpo infantil é vulnerável não importa o gênero. Esses homens que tiveram a coragem de falar dos seus assédios só mostram que desde criança aprenderam que a mulher é objeto, seja criança ou adulta. Esses relatos de assédio feito por homens confirmam o assédio sofrido por mulheres, a verdadeira razão por trás do #PrimeiroAssedio. Esses comentários masculinos confirmam a posição que as mulheres recebem: sempre vítimas por não terem agência sexual. O homem, mesmo quando assediado, se traveste de herói para não ter que entender ou lidar com a vulnerabilidade de seu corpo infantil.

Também o fato de eles acharem normal o que aconteceu na infância só confirma o pensamento machista que coloca a mulher em situação inferior: Não importa a idade, a mulher serve para os prazeres sexuais do homem. Um menino ser assediado por uma mulher adulta não é crime, é aprendizado. Pois eu pergunto a esses homens experientes que tiveram seus pintos 'mamados' por mulheres (vejam os comentários nesta notícia), como seria ter sido mamado por outro homem? Se o aprendizado sexual foi através do prazer do sexo oral, a experiência seria a mesma se tivesse sido com um homem? Pergunto também para o homem que tinha uma vizinha que 'batia uma pra ele', e se fosse o vizinho?

Achar que uma mulher mais velha não assedia é entender que a mulher não tem agência sexual, é reverter o quadro entre assediado e assediador. Mulher pode ser assediada porque deve prazer ao homem e mulher deve assediar para ensinar o homem a ter prazer. De qualquer maneira, é nojento.

Tal insensibilidade resvala na falta de empatia (um dos primeiro indícios de sociopatia), não entender o trauma alheio, não entender o que é passar a vida sendo assediada, diminuída e objetificada. Eu não tenho como falar da experiência feminina, mas há muitos relatos de jovem afeminados que passam por situações parecidas, meninos que são tratados como mulheres e têm seus corpos vilificados nas escolas e em outros espaços públicos. Tal comportamento, que normalmente é gerado por homens, confirma o assédio feminino. Mais uma vez, a mulher, em espaço público ou privado é objeto.

Esses homens assediados são provavelmente os que assediam as crianças hoje, que acham que podem falar em sexo com a Valentina, uma menina de doze anos. E que podem tocar os peitos de outras mulheres na rua. E isso, homens, é resultado de trauma. Assim como em "O labirinto do fauno", vocês transformaram o trauma em uma linda fantasia colorida. Porém na sua fantasia, vocês se transformaram nos monstros que acham que toda mulher é objeto, que toda mulher está aqui para 'bater uma pra você'. Porém quando vocês abrirem os olhos vão ver um monstro retorcido dentro de vocês mesmos.

Você, homem que foi tocado por mulheres mais velhas, foi vítima de assédio. Mas você é vítima hoje não por ter que lidar com a sua dor de ter passado a vida tendo seu corpo aberto nas ruas. Você é vítima por ter-se tornado insensível ao trauma do outro. E por não querer ver que é você que perpetua esses comportamentos.

Abram os olhos, entendam a dor alheia e aproveitem para, quem sabe, entender o próprio corpo. Vocês não são heróis, são vítimas também. Apenas aprenderam desde cedo que o corpo masculino não pode ser violado (a não ser se for por outro homem). Essas mulheres que estão falando sobre o #PrimeiroAssédio estão abrindo caminho para entendermos que há limites na nossa convivência social. Esse discurso não pode e não vai ser silenciado pela vergonha que vocês estão tentando impor nelas. Há séculos que vocês, homens machistas, fazem isso, usam a vergonha para silenciar a mulher, para manter o seu espaço privilegiado de detentor e provedor de prazer. A verdade, homem machista, é que você é capaz de muito pouco prazer, assédio não dá tesão.






segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Além da saudade

Muito se fala de como saudade é uma palavra única, que não se traduz em outras línguas. Saudade sempre aparece em listas das dez palavras mais difíceis de traduzir.

E é verdade, a saudade é nossa. Difícil de traduzir, difícil de explicar em aula, mas gostoso de falar. Eu adoro falar de saudade em aula. E ir tirando explicações dos alunos. Uma vez um aluno disse em aula, "só sente saudade quem esteve no Brasil (Desculpem, companheiros lusófonos, mas a saudade é de todos nós)." Recentemente um aluno americano que morou em Portugal disse que os portugueses acham que a saudade é só deles.

Eu me divirto quando os alunos querem dizer "saúde" e dizem "saudade" quando alguém espirra na aula. "Atchim", "Saudade". E eles perguntam, mas o que é saudade? Eu tenho a impressão de que a saudade entra discretamente no corpo daqueles que começam a aprender português e fica lá adormecida esperando o momento certo de aparecer.

Só que para quem está fora do Brasil, a saudade é só o começo. Vivendo fora do Brasil, muitas outras palavras vão aparecendo que não conseguimos traduzir. Saudade é a clássica, a que perturba os tradutores, a mais poética, mas há muitas outras! Há palavras que não conseguimos achar uma correspondência em inglês e eu fico tentando entender
com meus alunos. Ou tentando achar alguma palavra em inglês que explique aquele momento.

A minha favorita entre as que não consigo traduzir é chato e chatice. Mas não é só dizer que filme 'chato', tem que pensar naquela entonação que a gente usa quando fala que alguém é 'chato'. A tradução literal é 'annoying', mas como muitas palavras a tradução literal não explica a nossa intonação no 'chato'. Sempre me vem à cabeça o Vlad de "Vamp" chamando a Natasha, de 'Nachata' dizendo "chata, chatinha...."
Lembra das broncas dos nossos pais? Que chato...... Ou daquela aula chata? Então, como explicar?

A outra palavra é frescura. Sabe quando você implica que o arroz veio em cima do feijão e você queria ao contrário? "Frescura".... Ou quando você não quer que entrem na sua casa de sapato? Ou quando você detesta comer em pé no meio da rua? Quando você quer comer uma pizza, mas vê sujeira no chão da pizzaria? "Frescura" E aí? O que dizer em inglês?

"Que fresco você, não?"

Puta aparece com frequência nas aulas. Como explicar uma 'puta festa', ou então que você é um puta cara legal'? Uma vez eu falei em aula, "'é um puta filme". Silêncio. Uma aluna latino-americana perguntou, finalmente, "puta?" Foi nessa aula que eu percebi que durante semestres alguns alunos saíram das aulas sem entender do que eu falava. "Sim, puta pode ser usada como algo bom, 'um puta filme'". E nessa mesma aula, um aluno carioca disse que essa coisa de 'puta festa' é coisa de paulista e que ele achava engraçado, mas não fazia muito sentido. Ok, meu....

Entre tantas palavras e momentos, a mais gostosa é gostoso. Tanto pra comida quanto pra gente. Eu adoro explicar os sentidos de gostoso. Essa nossa vontade antropofágica....
Os alunos não acham estranho quando falamos de comida. Mas eles enlouquecem quando uma situação é gostosa. Sabe? Aí o cérebro internacional não processa.  Sabe aquela sensação gostosa de ficar deitado na grama do parque no final do dia? Não é 'relaxing', não. Não é relaxante, é gostoso mesmo. É gostoso pra caramba.

E uma aluna me perguntou, "como uma palavra pode ser gostosa?" Dá-lhe Oliver Sacks neles!



Outro dia apareceu a palavra nojento em aula. Explicar no sentido de 'ai que nojo', ok. That's gross, disgusting'. Mas e aquele pessoa nojentinha? Fresquinha? Chatinha? Só com personagem de televisão mesmo. E não, não há uma palavra para essas pessoas que fazem cara de nojinho quando entram em restaurante do centro da cidade, ou quando pensam em andar de metrô em São Paulo, ou quando imaginam uma coxinha-creme. Essas pessoas nojentinhas e fresquinhas ficam sem tradução ainda que existam milhares delas espalhadas por Nova York (e muitas dessas pessoas falam português mesmo).

Outra coisa que só sente em português. Aflição. Quando passam a mão em veludo e você morre de aflição (eu, pelo menos). Cada um com a sua.... Mas aqui, não se diz "ai, que aflição". Talvez sejamos mais frescos mesmo. Ou será que sou eu que um fresco nojentinho cheio de aflições?

Essas palavras todas estão na pele, no sentir. E acho que por acabar de ler a autobiografia do Sacks essas ideias de sentir, confundir, foram se formando na minha cabeça. Fui da saudade pro Oliver Sacks, pro Milton e acabei assistindo de novo "Dona Flor e seus dois maridos", pensando nessas situações-traduções.

E o que será que é isso que dá dentro da gente?
É saudade, aflição, gostosura, chatice... é a gente mesmo. É língua.
É a nossa língua que falta todos os dias no meio da outra língua. E que, às vezes, complementa uma terceira língua. É assim que a gente vive fora, faltando palavras o tempo todo. Observando movimentos para entender como se faz, como se é. E ver que mesmo quando a língua falta, o corpo responde. E já no aperto de mão, sabemos que não viemos do mesmo lugar, mas a mão abre espaço para que a gente se entenda.


P.S. Essas ideias todas merecem um texto com as situações que passamos com o espanhol. Estar em departamentos de 'espanhol e português' sendo minoria entre os hipano-hablantes que veem de mais de vinte países é 'rico' . Se entre eles já há confusão, imagine quando colocamos um sambinha no tango-merengue-salsa deles.....