quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Metrô em Nova York


Com exceção dos paulistanos que acham que metrô tem que sair da porta de casa e parar na porta do trabalho com saída coberta para os dias de chuva, o metrô é o transporte favorito dos habitantes das grandes cidades. Todo mundo usa, todo mundo aprova e todo mundo reclama.

O metrô em Nova York é uma boa representação da cidade, para o bem e para o mal.

É diverso, tem gente de todos os tipos, religiões, cores, idades, classes sociais.... É a Nova York dos filmes e das propagandas – uma cidade para todos. Para quem vem de fora parece que é rápido, eficiente, quase nunca está cheio... O marketing do cinema e da televisão realmente funciona. Porém é num metrô feio, sujo, fedido que a maioria das pessoas passa o dia indo e voltando.

Raros momentos de metrô vazio e limpo.
É também no metrô que as pessoas ficam duas horas ou mais por dia para chegar em casa, porque a maioria desses todos não tem condições de morar nas partes nobres (aquelas que aparecem nos filmes).

E também é no metrô que as pessoas mostram a sua cara. A má vontade, a birra, o mal-humor, a chatice, a grosseria, e especialmente o individualismo. As pessoas não se levantam para os mais velhos, para as grávidas, para ninguém. E quando você se levanta a primeira reação do idoso é medo de um possível ataque. Gentileza, aqui, gera susto.

Ontem eu me levantei para um homem com uma criança de colo e duas pessoas além do pai com o filho me agradeceram. Ser gentil é tão raro que te eleva a posição de mártir no metrô de Nova York.

As pessoas gostam de ser impacientes com os outros. Há um prazer nova-iorquino em ser grosso com turistas, como se eles tirassem o espaço de quem ganhou a honra de morar no reino em que Seinfeld é um rei bobo-da-corte. Se você precisa olhar o mapa das linhas de metrô (que são muitas) a pessoa sentada na frente do mapa não vai se mexer ou vai sair resmungando como se fosse um ataque ao seu espaço pessoal.

As pessoas não veem problema em carregar a mochila gigante nas costas, beber seu café gigante, ler seu jornal gigante e ocupar o espaço de duas pessoas. Afinal, este é um país livre e somos cidadãos, não?

Há linhas em que pessoas brigam pelos assentos, gritam, às vezes a ponto de violência física. Pessoas jovens, saudáveis se empurram, se xingam em línguas. As pessoas comem, cospem, escarram, jogam lixo no chão, falam alta, cortam as unhas...

Como não seria diferente, os homens exercem seu machismo em todas as instâncias. Sentado ou em pé. Em todas as linhas os homens ocupam dois assentos com seu saco gigantesco que impossibilita fecharem as pernas. E não se mexem, é um direito deles. Saibam disso.

E o mais triste é observar os comentários racistas das pessoas em relação aos usuários do metrô. Os brancos, súditos de Seinfeld e Carrie Bradshaw se comportam muito bem no metrô, os moradores de Manhattan são os usuários perfeitos. Aqueles que transitam entre a 96 e a 14. O problema são os outros. Sempre os outros, os chineses, os negros, os pobres, os adolescentes negros... esses não têm educação. Racismo disfarçado de consciência de transporte público. Basta andar um pouco que percebemos que a falta de educação não é racial ou étnica, é nova-iorquina.

Ser grosso é o prazer de quem mora aqui. Esquecer que existe alguém ao seu lado é característica e o metrô é a representação pública do individualismo nova-iorquino. Os homens de terno e gravata saem andando com pressa como se já tivessem perdido seu primeiro milhão do dia, as mulheres de meia-calça e tênis saem correndo porque precisam ganhar aquele milhão perdido.


Ninguém perdoa. Ninguém se permite um olhar atendo ao indivíduo do lado. No metrô nova-iorquino ser minimamente educado te faz um ser elevado. É um metrô que transforma em raridade o que deveria ser senso comum: educação.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Nova York em pedaços

Nova York é de todos, mas é para poucos.

Nova York é fantasia, é filme, é cena de televisão. É café em cada esquina, não é violenta, é segura. As pessoas andam, o metrô funciona, as lojas estão abertas aos domingos. Os restaurantes não são caros. Come-se bem, vive-se bem, sonha-se melhor ainda....

.... porque Nova York, quando é real, não sobra muito. Não te deixa ficar doente, não te deixa parar. Mas ao mesmo tempo te deixa ser enquanto se está mal.

Nova York está aberta para todos, mas poucos vivem

Nova York é Manhattan, é a pontinha do Brooklyn agora que investidores resolveram ganham dinheiro nas bordas dos rios. Nova York é pequena, é chique, é elegante.

Até o momento em que você vê mulheres andando de salto alto, até o momento que você precisa pegar o metrô às seis da manhã para trabalhar ou ficar esperando o metrô às quatro da manhã porque o táxi se recusa a ir até a sua casa.

Nova York é uma imensidão de coisas que foge dos olhos.

Nova York se divide entre os que podem tudo e os que servem aos poucos que decidem.

Há aqueles que advogam por uma Nova York mais igualitária, há os que acham que o dinheiro manda e que a vida é assim mesmo. Há os que trabalham, há os que simplesmente têm dinheiro.

Em Nova York se paga 5 dólares por uma boa comida. E entre milhões de refeições de cinco dólares, há gente que paga 500 dólares por um prato, não come tudo e joga fora o que sobrou. Há gente que ajuda, há gente que atrapalha, gente que finge que ajuda e gente que adota cachorro de três patas.

Nova York é vaidosa. O feio é bonito, o bonito incomoda o antigo. O novo destrói o seu redor. Parques saem do chão, ajudam a sentir a desigualdade nos primeiros meses antes que a grana destrua tudo ao redor. Tudo fica de vidro, transparente. A rua é de todos, mas o vidro é dos que pagam a tarifa.

A gente caminha na sombra porque o vidro, ainda que transparente, consegue tapar o sol. Aqui o sol é de poucos. A rua, de todos. Desde que você siga as normas e expectativas do que se espera dos que podem caminhar livremente.

Todos andam, muitos são parados. Sem motivo. Nova York é abandono do Roberto Carlos. Nova York dói nos que se deixam sentir. Mas te faz gozar quando os que doem te fazem sentir.

Há gente que advogue por uma Nova York secreta, aquele em que vivemos, longe dos grandes salários. Nova York é boa porque há espaço para todos, me parece. Nova York é “nem luxo, nem lixo”. É a minha vida, fora do centro, trabalhando no centro, procurando teatro nas laterais.

Dá para ser feliz aqui. Se você sabe amar o que está no meio.

Nova York, me parece, é ideal para quem sabe amar o que não é óbvio. E para quem sabe deixar o óbvio surgir sem vergonha. A cidade não dói, te faz doer. Mas para quem sabe dizer ‘fuck you’ na hora certa.

Muita gente deixa Nova York, outros insistem, mas todo mundo tem vontade de sumir de vez.

Acho que a Rita Lee estava em Nova York quando escreveu “Shangrilá”.





quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Além da saudade

Muito se fala de como saudade é uma palavra única, que não se traduz em outras línguas. Sempre aparece em listas das dez palavras mais difíceis de traduzir.

E é verdade, saudade é nossa. Difícil de traduzir, difícil explicar em aula, mas gostoso de falar. Eu adoro falar de saudade em aula. E ir tirando explicações dos alunos. Uma vez um aluno disse em aula, "só sente saudade quem esteve no Brasil (Desculpem, companheiros lusófonos, mas a saudade é de todos nós)." Recentemente um aluno americano que morou em Portugal disse que os portugueses acham que a saudade é só deles.

Eu me divirto quando os alunos querem dizer "saúde" e dizem "saudade", quando alguém espirra na aula. "Atchim", "Saudade". E eles perguntam, mas o que é saudade? Eu tenho a impressão de que a saudade entra discretamente no corpo daqueles que começam a aprender português e fica lá adormecida esperando o momento certo de aparecer.

Vivendo fora do Brasil, muitas outras palavras vão aparecendo que não conseguimos traduzir. Saudade é a clássica, a que perturba os tradutores, a mais poética, mas há muitas outras! Há palavras que não conseguimos achar uma correspondência em inglês e eu fico tentando entender
com meus alunos. Ou tentando achar alguma palavra em inglês que explique aquele momento.

A minha favorita entre as que não consigo traduzir é chato e chatice. Mas não é só dizer que filme 'chato', tem que pensar naquela entonação que a gente usa quando fala que alguém é 'chato'. A tradução literal é 'annoying', mas como muitas palavras a tradução literal não explica a nossa intonação no 'chato'. Sempre me vem à cabeça o Vlad de "Vamp" chamando a Natasha, de 'Nachata' dizendo "chata, chatinha...."
Lembra das broncas dos nossos pais? Que chato...... Ou daquela aula chata? Então, como explicar?

A outra palavra é frescura. Sabe quando você implica que o arroz veio em cima do feijão e você queria ao contrário? "Frescura".... Ou quando você não quer que entrem na sua casa de sapato? Ou quando você detesta comer em pé no meio da rua? Quando você quer comer uma pizza, mas vê sujeira no chão da pizzaria? "Frescura" E aí? O que dizer em inglês?

"Que fresco você, não?"

Puta aparece com frequência nas aulas. Como explicar uma 'puta festa', ou então que você é um puta cara legal'? Uma vez eu falei em aula, "'é um puta filme". Silêncio. Uma aluna latino-americana perguntou, finalmente, "puta?" Foi nessa aula que eu percebi que durante semestres alguns alunos saíram das aulas sem entender do que eu falava. "Sim, puta pode ser usada como algo bom, 'um puta filme'". E nessa mesma aula, um aluno carioca disse que essa coisa de 'puta festa' é coisa de paulista e que ele achava engraçado, ok, meu....

Entre tantas palavras e momentos, a mais gostosa é gostoso. Tanto pra comida quanto pra gente. Eu adoro explicar os sentidos de gostoso. Essa nossa vontade antropofágica....
Os alunos não acham estranho quando falamos de comida. Mas eles enlouquecem quando uma situação é gostosa. Sabe? Aí o cérebro internacional não processa.  Sabe aquela sensação gostosa de ficar deitado na grama do parque no final do dia? Não é 'relaxing', não. Não é relaxante, é gostoso mesmo. É gostoso pra caramba.

E uma aluna me perguntou, "como uma palavra pode ser gostosa?" Dá-lhe Oliver Sacks neles!



Outro dia apareceu a palavra 'nojento' em aula. Explicar no sentido de 'ai que nojo', ok. That's gross, disgusting'. Mas e aquele pessoa nojentinha? Fresquinha? Chatinha? Só com personagem de televisão mesmo. E não, não há uma palavra pra essas pessoas....

Outra coisa que só sente em português. Aflição. Quando passam a mão em veludo e você morre de aflição (eu, pelo menos). Cada um com a sua.... Mas aqui, não se diz "ai, que aflição". Somos mais frescos mesmo....

Essas palavras todas estão na pele, no sentir. E acho que por acabar de ler a autobiografia do Sacks essas ideias de sentir, confundir, foram se formando na minha cabeça. Fui da saudade pro Oliver Sacks, pro Milton e acabei assistindo de novo "Dona Flor e seus dois maridos", pensando nessas situações-traduções.

E o que será que é isso que dá dentro da gente?
É saudade, aflição, gostosura, chatice... é a gente mesmo. É língua.
É a nossa língua que falta todos os dias no meio da outra língua. E que, às vezes, complementa uma terceira língua. É assim que a gente vive fora, faltando palavras o tempo todo. Observando movimentos para entender como se faz, como se é. E ver que mesmo quando a língua falta, o corpo responde. E já no aperto de mão, sabemos que não viemos do mesmo lugar, mas a mão abre espaço para que a gente se entenda.


P.S. Essas ideias todas merecem um texto com as situações que passamos com o espanhol. Estar em departamentos de 'espanhol e português' sendo minoria entre os hipano-hablantes que veem de mais de vinte países é 'rico' Entre eles já há confusão, imagine quando colocamos um sambinha no tango-merengue-salsa deles.....