domingo, 9 de março de 2014

Quem disse que você é homem?


"De que te serve ser um menino, se vai crescer e se transformar em um homem?"
Gertrude Stein, "Autobiografia de todo mundo"


Hoje enquanto eu lia o jornal sobre grupos feministas e cantadas na rua me lembrei de uma conversa que tive com amigos em São Paulo. Conversávamos sobre machismo, feminismo e aquele papo chato de que feminismo é coisa de mulher mal-amada...

NOTA: O assunto me parece mais atual do que nunca. Em dias como os de hoje em que uma cantora como Beyoncé lança um vídeo erótico dançando semi-nua para um homem totalmente vestido e ainda diz em francês no meio da música “os homens pensam que as feministas odeiam o sexo”, tal assunto faz-se mais atual do que nunca.

… Pois enquanto falávamos sobre esses assuntos em São Paulo, eu disse que havia horas que me dava vergonha de ser homem. Foi quando alguém disse – rindo – “mas você não é homem”. E todos na mesa riram. Eu também. Há um certo orgulho meu em não ser homem, pelo menos em não ser esse homem que grita “gostosa” na rua. Mas ao mesmo tempo, entre tantos gays na mesa, no momento que aquilo foi dito houve uma certa masculinização dos modos, dos jeitos, quase que desistindo do suco e apelando para a cerveja. “Não ser homem” incomodou muita gente na mesa.

Mas por que não ser homem é algo que ainda incomoda tanto? No fundo, quando ouvimos isso ou algo semelhante, muitos de nós – gays, veados, bichas, homossexuais – seja como for que chamamos a nós mesmos, nos incomodamos com esse papo de não sermos homens:

Deixar de ser homem é um exercício poderoso, é abrir mão de certas vantagens que ganhamos. Deixar de ser homem é querer ser equiparado à mulher. E isso é algo que poucos queremos. É ganhar menos, é ter seu nome gritado na rua, é não ser respeitado quando você quer consertar o carro, é não ser respeitado como profissional, é passar parte da sua vida aceitando que sua sexualidade é limitada, que seu orgasmo não é como o do outro, é acreditar que ter tesão com pornografia é coisa de homem, é assistir pornografia e entender que você é só um receptáculo que adorar levar porrada e ser xingado, afinal não querer ser homem é admitir que há uma diferença gritante entre nós que fingimos não perceber.

E ser gay – nem homem, nem mulher – nesses termos machistas é ser alguém que admite ser mais parecido com a mulher que com o homem. E isso vale a pena? Para a grande maioria dos gays urbanos que se silenciam em nome de respeito não vale. E o nosso silencioso armário, além de ofensas a nós mesmo, é também uma ofensa ao “ser mulher”. E mais uma vez, a mulher não escapa da afronta. Nesses termos em que ser gay é negar a masculinidade, é renunciar ao “ser homem”, quando nos ofendemos com “você nem homem é”, ofendemos diretamente a mulher. Pois se não queremos não-ser-homem, o que nos resta?

Na nossa sociedade binária, há homens e mulheres. E há, de acordo com a psiquiatria aqueles que não se conformam nem com um, nem com o outro – trans... – E para muitos ser gay é estar no meio dos dois. É querer ser mulher num corpo de homem. Porém para muitos gays isso é coisa de travesti, para outros de transexual e a matemática não se fecha nunca. E nem deve. Somos homens, mulheres, trans, ou nada, ou somos um pouco de tudo ao mesmo tempo. Há homens que gostam de homens, homens que gostam dos dois, homens que não gostam de nada, mas acima de tudo há homens que se sentem melhores que outros simplesmente por serem homens. E esse último está involucrado em todas as manifestações masculinas da nossa sociedade machista.

Há um outro caminho? Hipoteticamente, sim. Há o caminho “ser gente”. Simplesmente. Ser uma pessoa que respeita os outros, uma pessoa com características únicas ou coletivas, mas uma pessoa e nada mais. Porém, digo hipoteticamente porque em um sociedade em que a mulher ainda é tratada como um ser menor, essa alternativa ainda não me vale. Pois ao “ser gente” fecho os olhos para a opressão masculina com a mulher que nos destrói aos poucos todos os dias. Ainda não dá. Preciso escolher ir além de ser homem, ser mulher e até de ser gente. É preciso ser alguém que não se conforme com o homem que grita “gostosa” na rua, com o homem que acha que não há problema em tirar uma foto por debaixo da saia de uma mulher, ser uma pessoa que não se conforma com a exploração corporal de uma mulher dançando pelada para um homem vestido, ou seja é não se conformar com uma infinidade de fatos do nosso breve cotidiano.


Vale a pena ser homem? Se você abrir mão da verdade ao seu redor, sim, vale. Muito. Mas ignorar que suas colegas de trabalho ainda ganham menos que você, ignorar que suas parceiras/amigas/mulheres têm que pensar no que vão vestir para não serem confundidas com um simples objeto sexual, ou por temer serem estupradas,  ignorar a negação da sexualidade feminina em nome do orgasmo masculino, ignorar a falta de espaço na política, ignorar todas essas diferenças faz com que ser homem não valha a pena nem por um minuto. 

Ainda que internamente me doa saber que não sou homem, é o meu exercício diário aceitar que esse homem que não abre mão de suas vantagens já não sou.

Um comentário:

  1. Deve ser astrológico, hoje mesmo eu senti necessidade de escrever quase sobre o mesmo assunto: http://especulante.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir