segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Entre palavras


Eu sou um homem de palavra, desculpe, sou uma pessoa de palavras, das palavras. E estou preso entre gêneros que me secam, me desatinam e me traçam caminhos.

Sou uma pessoa de palavras que foge dos rotas letradas e segue por paralelas acadêmicas. Sou uma pessoa que usa as palavras em espaço escolar, que encanta de maneira presencial sonhando em ser página de livro. Pessoa que sonha em ser citação, em ser palavra na boca dos outros, em ser ideia alheia.

Fui seguindo a rota da palavra. Humanas, Letras, Educação, Literatura. Colegial, Faculdade, Metrado e Doutorado. Secretamente escrevi vários livros de poesia. O primeiro aos vinte anos, nunca ninguém leu. Os jurados do Nascente/ USP quase leram, mas desisti na última hora. Todos os meus livros escondidos foram fruto do amor, do desamor ou da vontade de ser amor. Livros segredos.

Segui a trilha acadêmica, escolhi falar no gênero menos amoroso de todos, e fui colocando pitadas de desejo nas notas de rodapé, nos exercícios de língua, nos trabalhos em diversas línguas. E fui mantendo meu segredo poético em mim. Aos poucos fui saindo do armário. Para mim, foi mais fácil sair do armário como pessoa gay que como pessoa poeta. Pois o poeta tem outro nome. Grito com orgulho, “sou gay”, mas me silencio de vergonha “sou poeta”. Tenho confiança no meu ser gay, mas desatino nesse ser poeta. Porque ser poeta é como título de nobreza, ninguém se auto-intitula, é posto recebido. Poeta é como travesti, nenhuma se autonomeia, é batizada. Pois, eu não posso ser poeta...

Por isso, escrevo dissertação de mestrado, trabalho acadêmico, artigo, apresentação em conferência, mas não falo de poesia, falo de escrever, falo de ler, falo da vontade de escrever, mas não falo da minha vontade de escrever. Se defendo a ficção, é porque secretamente defendo a minha vontade de ficção. E sigo em silêncio.

Silêncio sufoca e chega aquele momento que parece que vamos explodir. Eu estou preso nas minhas próprias palavras. Deixei meus parágrafos acadêmicos me prenderem entre páginas e capítulos de algo que me dói seguir fazendo. Mas se dor é propulsão, haverá uma hora que isso acabará.

Meu engano foi achar que podia enganar a mim mesmo. Não me casei com uma mulher, não a maltratei, mas me casei com a academia e deixei que ela achasse que eu fosse uma pessoa de palavra científica. Ela me aceitou desse jeito ajambrado que escreve em inglês pensando em português com desafinos de espanhol. Essa academia, quando estamos entre nós dois, me aceita do jeito que sou. Mas quando partimos para orgias intelectuais parece que me transformo naquele tímido que só observa com medo ou no doido que se atira em todo mundo sem pensar muito.

Mas eu penso, é o que faço mais, pensar. Me cai o cabelo, me cai a barba, me salta na pele essa mania de pensar. E eu insisto no acadêmico porque, às vezes, eu acho que tenho algo para falar, quando, na verdade, eu queria cantar. Mas o destino é sábio, não me deixou cantar, porque eu preciso escrever.

Então eu escrevo. Escrevo porque eu acho que devemos escrever senão estamos perdidos. E quando não escrevo, secretamente danço. Porque todo poeta deveria ser bailarino. E todo acadêmico deveria ser bailarino. E todas as pessoas deveriam ser bailarinas.

A academia me quer tese. Eu quero palavra. Haverá um dia em que isso termine. Só existe matéria quando o desejo se converte em vontade e daí se transforma em palavra. Talvez eu precise deixar de dançar para que a academia surja.

Hoje o poeta quase saiu totalmente do armário. Volta mais um pouco, vou deixar uma porta aberta para que vocês vejam que ele ainda é, mas precisa estar lá mais um pouco.


Ainda que a vontade de dançar seja infinitamente maior, é preciso formalizar as palavras. Devorar a academia antes que este gênero tão específico, tão definido – tese – devore esse poeta tão escondido.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Pensando em órgãos excretores



Há um lado radical meu que sente uma certa angústia (ou raiva mesmo) quando ouço de conhecidos que vivem abertamente no armário lacrado que se sentem desrespeitados com comentários como o de Fidélix. Como sentir-se desrespeitado se a princípio ninguém sabe dessa sua parte (ou pequena parte, como dizem alguns)? Deve ser angustiante sentir-se desrespeitado e não poder dizer o por quê. Eu me sinto desrespeitado, não porque ele disse besteiras, mas porque ele disse absurdos que afetam, não só a mim, mas a todas pessoas que me conhecem e me respeitam também. O constrangedor silêncio de todos os candidatos e de muita gente sobre o assunto nos faz menos importantes, menos relevantes e menos cidadãos. Se vamos falar de identidades, é preciso FALAR sobre o assunto e não silenciar-nos enquanto um grita impropérios. 

E eu fico ansioso porque me parece que temos que responder a tudo que nos acontece em 140 caracteres, e com frases de efeito. E eu me silencio porque acho que ninguém vai ler, ouvir ou se importar ou quando eu finalmente tenho uma resposta, o assunto já passou! Não consigo ser tão breve, não acho possível e tenho medo da brevidade das discussões hoje em dia. Reflexão não pode ser limitada, deve ser articulada dentro do espaço e tempo que são necessários para as nossas meditações.

E fico mais ansioso porque é difícil responder a um indivíduo que associa sexo anal à homossexualidade (nem vou comentar a relação com pedofilia porque não quero ter que justificar tal vergonhoso absurdo verbalizado pelo candidato). A minha ansiedade vem do fato que para responder a tal comentário é preciso falar de pênis, vagina, ânus e aí, todo mundo arrepia a nuca... Precisamos falar de sexo, precisamos falar das nossas partes... Então é melhor nem falar nada.

Pois se tal candidato faz tais associações é preciso perguntar: Não são todos órgãos excretores de alguma maneira? Urina, fezes... não está tudo conectado de maneira anatomicamente superficial? E também temos que falar de sexo anal. Pois afinal, heterossexuais não fazem sexo anal? Ou então, todo gay faz sexo anal? Sexo anal é exclusivo para homens? Como podemos deixar um homem simplificar tanto a experiência sexual humana... em nome de quem? Do quê?

Comentários como o de Levy Fidelix são perigosos em vários sentidos. Eles associam práticas sexuais a identidades gerando ansiedade e repressão em muita gente. Nos silenciam porque nos dá medo de falar de identidades sexuais quando a única coisa que identifica um indivíduo é sua prática sexual.

Ser homossexual, gay, lésbica, bicha, bissexual, sapatão, heterossexual, travesti, transexual, transgênero não é associar-se a uma prática sexual, é associar-se a uma determinada afetividade, que pode ou não incluir atividades sexuais. Se precisamos falar de identidade sexual ou de gênero é preciso falar de muitas outras coisas que vão além do ato sexual. É o modo de falar, de vestir, onde morar, com quem se relacionar... é inserção em várias culturas que são tão diversas quanto as nossas práticas sexuais.

As frases de Fidelix incitam ao ódio, ao separatismo e à incompreensão. Não nos ajudam em nada como sociedade igualitária ou uma sociedade que busca igualdade entre os seus cidadãos. Tais comentários devem ser sempre questionados, deve haver espaço para discussão, para que essa pessoa possa ser silenciada não pela censura, mas pela argumentação. Quanto mais discussão houver, menos espaço para tais absurdos existirão. Lembrem-se que no passado pesquisas associaram tamanho do cérebro à inteligência, justificando quais raças seriam superiores a outras, que pesquisas comprovam que homens podem mais que mulheres (sim, isso ainda existe).... é preciso espaço e tempo para que tais discursos sejam, por fim, silenciados.

Porém, enquanto isso não acontece, a aprovação da lei que criminaliza a homofobia é fundamental para que sejamos, pelo menos, responsáveis pelas coisas que falamos ou fazemos.




P.S. Como eu disse no texto, eu preciso de tempo para pensar e refletir. Este texto veio do calor da hora, me ajudem a corrigir, melhorar e pensar mais sobre o assunto.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Esse mundo.....


Acho estranho falar de gente famosa usando só o primeiro nome como se fosse íntimo, acho mais estranho ainda chamar alguém de amigo quando você só viu a pessoa uma vez ou pior, nos dias de hoje, quando você nunca viu.

Acho brega dizer que adora o Caê, o Gil, a Gal, para mim eles são o Caetano Veloso, o Gilberto Gil e a Gal Costa, nunca os vi, e não sei se eles me dariam permissão para chamar pelos apelidos.

Eu me lembro de um dia que estava num restaurante e um amigo disse, “olha, o gianni está aqui”, eu entendi Jean e perguntei quem era, meu amigo, bravo, muito bravo me chamou de arrogante e disse que eu era um besta que adorava novela e fingia que não sabia quem era o Reinaldo. “Que Reinaldo?” Meu amigo nunca entendeu que não é arrogância, é vergonha mesmo. Para mim, aquela pessoa é o Reinaldo Giannechini, ator de novelas (que, sim, adoro assistir). Ele no restaurante é um pessoa que eu não conheço.

Eu também não sei se famosos são vaidosos ou não, portanto não me dirijo a eles como se fossem íntimos dizendo que adoro o trabalho deles. Não sei quem são. Eu conheço a obra. Há uns que gostam de serem reconhecidos, mas com o risco de  passar vergonha prefiro manter-me na minha arrogância usual. Sei lá... a gente mede os outros pelo nosso metro, não? Eu detesto intimidade com gente que não conheço, me arrepia o cabelo quem me chama de “Ju” sem me conhecer direito, pois então parto do princípio que pessoas conhecidas não querem falar com estranhos no meio da rua, não?

Também, sempre acho ridículo essas pessoas que choram, que gritam, que saem correndo, que fazem de tudo por gente que não conhecem. Eu choro com livro, filme, com obra, mas nunca com o artista. Acho meio problemático, na verdade. Mas aí, tem aqueles momentos que a gente tem que fingir que não chora....

Hoje morreu a Vange Leonel. Na minha adolescência cool eu adorava suas músicas, e adorava citar “Esse mundo” como uma música super gay. Li seus livros, e acompanhei a sua coluna na folha. E resolvi citá-la na minha tese ao falar de literatura lésbica (perdoem a simplificação, não é hora de teoria, é hora de choro disfarçado). Fiquei meio triste porque é uma pessoa que admirava muito. Quer dizer, uma artista, porque como pessoa não sei quase nada dela. Não é minha amiga, não é a Van... é a Vange Leonel.

E, no meio desses pensamentos, eu tive que voltar para a tese e mudar os verbos “She is...” para “she was...”, e dá aquele aperto na garganta.... mas tão cedo. A gente só chora quando a Globo coloca música triste, quando faz reencontro, mas assim do nada, de gente que não conhecemos, me parece estranho. É pela obra, talvez....

Essa é a coisa de tese que lida com gente viva, de repente, no meio da tese, antes da defesa, ela morre. Nem deu tempo de mandar para ela o trabalho pronto e dizer para ela, “Olha, Vange Leonel, você virou citação! Não é o máximo? Sei lá, eu acho o máximo, sonho de todo intelectual é virar citação!” Fica para próxima.

Eu não me arrependo de nunca ter falado com ela, de não ter foto para postar, dizendo, “saudades, grande”, “perdemos uma grande...”, ou algo assim. Essas manifestações públicas eu acho brega... o meu texto, não....

Ela ainda é Vange Leonel, eu não adorava a Vange, eu respeitava a Vange Leonel que morreu rápido demais para deixar uma obra mais consistente, maior, para termos mais coisas para ler.

O trem partiu, Vange Leonel. Boa viagem! Eu, desse lado do trem, vou tentar continuar brigando um pouco pelos nossos direitos e pode deixar que será em plena luz do dia! 

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Bode do facebook

Lembra daquela festa de adolescente que a gente tinha dúvida se ia, acabava indo, se arrependia, mas ficava até o final na esperança de que algo fosse acontecer?
Naquelas festas que você via um grupo de pessoas que realmente se divertiam e você não conseguia entender bem o por quê? Talvez você fosse uma dessas pessoas, e provavelmente nem sabe do que estou falando, mas quem me conhece sabe que meu apelido de “garoto enxaqueca” em todos os anos da escola não foi de graça.

Facebook. Essa onipresente mídia é aquela festa. Cheia de gente que você mal conhece, com uns dois ou três amigos que você realmente quer interagir e mais um monte de gente que você vai conversar por dois minutos, achar que fez amizade e nunca mais ver e mais aqueles dois que vão ser simpáticos com todo mundo, falar com todo mundo e dizer que foi a melhor festa do ano...

O facebook é uma representação virtual daquela festa. E se naquela época aquilo já me enchia o saco, hoje, a paciência é zero. 

Acho que o estopim para mim foi sair para jantar com amigos e as pessoas que me convidaram passarem a noite com o celular no mão, olhando celular e comentando sobre as fotos de pessoas que eu não conhecia... Já passei por situações piores, com um amigo de amigo jantando na casa da minha mãe com o garfo numa mão e o celular na outra. E tenho certeza que todo mundo já passou por algo assim.

Lembra da festa?  A gente chegava, “dava uma geral para ser visto e depois ia para um canto”? Check-in.
Alguém em sã consciência já parou para pensar na inutilidade social do check-in? Quem ganha? As empresas. Como sempre. A marca ganha visibilidade. Empresas faturam e o dinheiro virtual circula por poucas mãos reais....
Em uma escala de inutilidades, o check-in é provavelmente a coisa mais ridícula que existe no facebook: aeroporto, hospital, restaurante.... Eu ouvi a desculpa de que “era para avisar minha família”. Lembra-se do telefone? Whatssapp, mensagem de texto... Ainda há espaço para privacidade. Os seus 3293 "amigos" não são a sua família.  Essa necessidade exacerbada de mostrar, ser, ter, estar está passando dos limites. 

Eu não me conecto no facebook pensando “o que será que fulano está fazendo...”. Não faz sentido. Para mim, não faz. Eu ainda busco ideias... acho...

O que mais me incomoda no facebook é o armário gay (mesmo quando não falo do assunto, acabo voltando para o mesmo tema...). Vejo muitas pessoas que postam tudo, onde estão, o que fazem, o que comem, comentários idílicos, mas não colocam foto com namorado,  fazem check-in em todas os lugares da cidade, menos nos bares gays, tiram fotos com todos, menos com os amigos gays... isso me enfurece. Por que, além de tudo, o facebook colabora com mais uma forma de repressão pessoal. Eu me lembro da parada gay em São Paulo há dois anos, a tensão nos olhares de muitos conhecidos quando fiz “check-in” (uma pesquisa antropológica, claro). Não marquei ninguém, apesar da vontade...

Pronto já fiz meu desabafo arco-íris...

De volta ao check-in:

Meu último check-in foi um teste de paciência e arrogância, estava lendo um texto da Lígia Clark com o Carlito Carvalhosa. Ponto. Esse check-in é arrogante, assumidamente, mas ninguém se interessa. Assim como ninguém se interessa em saber que estamos no aeroporto. Foi o meu último teste. O check-in nada mais é do que prova de que se pode fazer algo, ou seja, pode-se consumir. É muito mais simples do que querer que as pessoas saibam onde estão. Se ninguém se interessa em saber o que estou lendo e com quem, por que tem que se interessar em saber em que aeroporto estou (não vou nem comentar os check-ins de sala vip....) Na verdade vou comentar, sim: A mesma pessoa que faz check-in de sala vip ficou criticando o tal do rei do camarote. Incongruência? Ou simplesmente estupidez? 
Talvez existam check-ins que não sejam tão abnóxios (acabo de descobrir que é uma palavra em português!), vou pensar em alguns e se chegar em alguma resposta, eu digo. 

Eu me lembro de uma época que eu pensava, "nossa, tal pessoa esteve em NY, poderia ter me procurado", mas a realidade é que me procuram as pessoas que me procurariam se eu morasse no Brasil, na China ou em uma missão lunar. Hoje eu acho super chique descobrir que pessoas estiveram aqui e eu nem fiquei sabendo. Discrição ainda é a coisa mais elegante do mundo. 

Estamos no auge da propaganda, da mais do que batida máxima “você não sabe o que precisa até descobrir que existe”. E enquanto vamos descobrindo nossas novas necessidades, o facebook vai ganhando dinheiro....

O que muita gente esquece é que, diferentemente das festinhas de antigamente, o facebook deixa rastros, uma marca permanente no seu passado (mesmo quando você apaga algo, fica arquivado em algum depósito gigante em algum país que cobra poucos impostos). Aquele curtida no texto do Diogo Mainardi, aquela compartilhada em uma notícia falsa, aquele comentário quase racista que você se arrependeu, aquela falta de check-in na parada gay depois de fazer check-in até do banheiro, essas críticas baseadas em 140 caracteres... tudo lá.

Estou numa fase de “bode total”, o facebook tem trazido à tona esse meu lado “garoto enxaqueca” que andava adormecido, especialmente porque eu comecei a perceber a perda de assuntos com muita gente que não desgruda o celular, ou melhor, não desgruda o facebook do celular. Não vou propor a eliminação total das mídias (o meu lado ditador ainda está adormecido), mas uma certa reflexão talvez. Eu tenho certeza que o uso exagerado do facebook emburrece, sim. E muito. Se o seu assunto tem se limitado a fotos dos outros, você está se transformando naquele clássico personagem que passa o dia na janela fazendo fofoca.

Eu dei o primeiro passo de saída da festa, retirei do celular, do ipad e só olho uma vez por dia no computador.
Hoje acho que o facebook não serve para nada, a não ser para vender coisas. Vender sonhos, vender inveja, e vender produtos. Enquanto, nós, estúpidos mortais vendemos a ideia de que somos felizes, várias empresas vendem milhões de produtos que nos fazem acreditar que somos felizes. E a vida feliz segue.



Em tempo: enquanto postava esse texto, li duas reportagens interessantes. Ainda há espaço para vida inteligente, ainda...

Em tempo 2: Check-in em uma guerra. Momento único. Check-in em tragédia natural, "Sobrevivi ao tsunami, gente, estou bem", esse também seria válido. E acho que check-in no jogo do Brasil e Alemanha, momento histórico... "fudeu, galera" + fotinho com V de vitória.... E se acontecesse um apocalipse zumbi, nos primeiros dias eu tirava umas fotos com uns zumbis, se eu sobreviver ao apocalipse, claro. 



sexta-feira, 11 de abril de 2014

A porra da buceta é dela!


Valesca é pensadora? Não sei, mas tem feito muita gente pensar. E isso já é algo que deve ser levado em consideração.

Já faz tempo que venho tentando articular uma defesa do funk carioca e de como, diferentemente de muitos outros gêneros brasileiros, tem se colocado à frente de uma possível luta feminista. Não sei o quão consciente tal atitude é, mas há muito tempo algumas funkeiras tem feito a gente repensar o nosso machismo de cada dia. 

Como quase todos os gêneros – da MPB ao sertanejo – o funk carioca, é tradicionalmente machista e centrado no olhar e voz do homem. Porém, aos poucos foi abrindo pequenos espaços de visibilidade para mulheres e travestis. E no meio dessa masculinidade exacerbada foram surgindo aos poucos mulheres aqui, outras ali, que resolveram falar sobre o desejo sexual, sobre a própria buceta, sobre fazer uma espanhola e engolir a porra, sobre homem que pede dedinho. Vulgaridades, baixarias.... coisas que muita gente disse, porém muita gente também nunca pareceu se importar com a mulher que joga a bundinha para frente, com a que passa e rebola, com a que se mostra só para o homem, que mexe a cadeira.... Pois, enquanto objeto, a vulgaridade feminina é mais aceita pois mantém a mulher no seu devido lugar, ou seja, a eterna garota de Ipanema que vem e que passa, mas a mulher que goza, que escolhe a rola que entra na buceta tem que se manter calada e relegada à rua escura e vazia da noite.

Não pretendo discutir qualidade artística e nem vou entrar no mérito temporal (lembrem-se que samba foi desqualificado e proibido, modernismo denegrido e também proibido...), o que me parece relevante é a importância de se ter finalmente mulheres dispostas a falar do próprio desejo, ainda que de maneira tão literal. E isso é fundamental para aprendermos que mulher goza, tem tesão e pode ter agência sexual. E é o que as funkeiras vêm fazendo, colocando a mulher à frente e no comando do seu desejo sexual. Afinal, às vezes, um pouco de literalidade é preciso para abrirmos os olhos (alguém se lembra da Marta da TVmulher?). 

Pensando no nosso modelo americano (ainda que quase esvaziado de conteúdo), Beyoncé quando dança, o faz seminua se mostrando para um homem totalmente vestido, ou seja, a sua agência sexual é sempre mediada pelo olhar masculino e vestido. Shakira, apesar de suas investidas quase feministas nos últimos anos (seus primeiros discos) fez um péssimo vídeo em que rola na cama com outra mulher – Rihanna – não por ter desejo por ela, mas por querer fazer “anything he wants”, pronome masculino que segue enfatizado na canção. A única que conseguiu tentar mostrar a maneira como a mulher é tratada foi a Jennifer Lopez que fez um vídeo em que o homem é o objeto coisificado. O vídeo - censurado nos EUA - é interessante (apesar da música ser bem chata) ao a inverter a tradicional posição de objeto colocando o homem nesse lugar-coisa, mas o que deveria nos chocar ainda mais é o fato de que precisamos de homens para nos mostrar que essa imagem de mulher-objeto é ridícula. Outra tentativa de abrir nossos olhos foi a sátira que os Bondi Hipsters fizeram com as fotos que uma modelo fez para a revista GQ, um homem semi-nu falando as bobagens que ela disse na revista

Voltando ao Brasil....

No meio de tanta vulgaridade que aceitamos, lemos e mais importante consumimosquando nos aparece uma mulher gritando que a porra da buceta é dela nos chocamos, nos assustamos sem nem pensar que quando uma mulher ralava a buceta na boquinha da garrafa todos imitávamos entre risadas e diversão.  A essa mulher que não tem vergonha de dar o cu, eu aplaudo e admiro, pois finalmente há mulheres que vêm e falam que gozam quando querem e quando acham necessário e não só definem seu orgasmo pelo prazer masculino. 


Não sei se Valesca é pensadora, isso não me importa. O que nos importa nesse momento é ver que a sua canção ou performance nos faz pensar a respeito da posição da mulher. Por isso, também acho fundamental a imagem que ela distribuiu pelada dizendo que não merece ser estuprada. Ela é dona do corpo dela e nua ou não, vagabunda ou não, não pode e não merece ser estuprada. Ainda hoje nos pegamos com pensamentos conservadores e machistas ao vermos mulheres seminuas, como se uma mulher assim não merecesse respeito. Chamá-la de vagabunda é concordar de maneira indireta com a pesquisa do IPEA e isso é propagar a visão machista em que vivemos. Não me importa se é promíscua, se é santa, se está pelada, pois se o que uma mulher faz com o corpo é pelo próprio prazer, ela não é vagabunda. Não é puta. É mulher.

Muitos argumentam que há outras maneiras mais “discretas” de ser feminista. Maneiras mais intelectuais – Simone de Bouvoir, Marilena Chauí, Monique Wittig, Audre Lorde, Pagu... – Sim, claro, mas uma não anula a outra. Que a cultura pop seja porta de reflexão para debates mais aprofundados não é novidade. O que me parece estranho é negar essa cultura pop sem se aprofundar em outros textos. Compreendem? Quero dizer aqui, de forma bem clara, que muita gente esvazia o valor do pop, mas segue assistindo televisão e comprando enlatado. Negue a cultura pop, mas faça com propriedade. Leia Schopenhauer (ainda que de acordo com meu grande amigo/mestre Mario ele seja um escroto super valorizado) como no link que uma amiga me mandou hoje. Leia. 

Declarar que esse tipo de música é simplesmente baixaria é tentar, mais uma vez, negar a agência sexual da mulher e mantê-la como a eterna garotinha de Ipanema que só passa, mas não diz nada, objeto de desejo do homem e só do homem.

Há muito que se fazer. E é preciso ser feito desde cedo. Você que tem filhas pequenas, olhe para os seus brinquedos. Não há brinquedo de montar? Por que as casinhas de bonecas já vêm montadas? Meninas não montam, isso é coisa de menino. A historinha da princesinha que vai ser salva, a bonequinha que vem com namorado, menina não senta de perna aberta, menina não corre, menina não constrói aviãozinho.... e a lista vai. E de pouco em pouco achamos normal menina não saber montar coisa ("coisa de homem"), dirigir mal ("coisa de homem").... Perceber que muitos conhecidos estão repetindo esses valores, me dói, por isso que aplaudo as funkeiras que não têm medo de gozar porque ainda hoje vou ver muitas meninas crescerem sem saber direito o que é gozar porque menina direita se comporta, passa de biquíni na praia sempre em silêncio. Eu prefiro o grito desafinado de uma funkeira ao silêncio comprometido da eterna garota de Ipanema.


Em tempo 1: Eu sei que há muitos outros exemplos na música, Ângela Roro, por exemplo, mas quero pensar nos modos como falamos abertamente sobre sexualidade e de como a voz masculina quando se apodera do prazer não nos choca, mas a voz feminina, sim.

Em tempo 2: Este texto é parte de um projeto meu sobre feminismo e homossexualidade (e claro, muita cultura pop) que vai se desenrolando e se desenvolvendo aos poucos. Quem quiser, podemos falar mais sobre o tema.