quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O armário paulistano e a volta para Nova York



Desde que saí do Brasil minha vida mudou em muitos aspectos. Há coisas que são melhores, outras não, algumas melhorando... mas a vida segue e eu vou caminhando... Porém talvez o principal ponto de mudança tenha sido a minha vida totalmente fora do armário. Hoje, não escondo, não omito, não minto. Se me perguntam se tenho namorada respondo que não e falo sobre a minha sexualidade de maneira natural e tenho a maior de todas as certezas que a minha maneira de falar acalma as pessoas e traz aliados para um mundo mais livre de tantas amarras. De fato, algumas vezes encontro surpresa; outras, algumas caras estranhas, mas gosto de pensar que essas caras são as mesmas quando digo que sou fã de Buffy, a caça-vampiros ou alguma comédia ruim da televisão.

Estar fora do armário, me propiciou uma "verdade" que nunca tive antes. E sempre que encontro pessoas que me perguntam se isso realmente é uma vantagem, digo que sim. Perdi amigos? Não que eu saiba, se perdi não percebi, pois alguém que ainda pensa nesses termos fez bem em perder contato comigo. Ganhei amigos. Muitos. A minha orientação sexual nunca foi motivo para piada em nenhum ambiente em que estive e quando foi eu estava no meio da piada e isso é bom. Dar risada de nós mesmos é bom. Seja da barriga, do dinheiro, do amor, do carro ou dos nossos estereótipos...

Claro que fazer pesquisa em “Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender and Queer Studies” ajuda e muito, mas ao mesmo tempo, decidir a minha orientação sexual pela área de estudo é querer dizer que um botanista é uma planta, não? Mas entendo a associação e vou descontruindo mitos aos poucos.

E à medida que fui me aprofundando na minha pesquisa, fui percebendo questões, incertezas ou como dizem em inglês “glitches” na área que me fizeram pensar em muitas coisas. Ultimamente fala-se muito em fluidez de sexualidade, de rótulos... algo que a academia brasileira tem falado bastante. O ativismo fala de outra maneira e da importância de se manter tais rótulos, ou bandeiras, ou identidades (não quero entrar nessa questão agora, isso me tomaria outra tese, mas afinal o que é identidade?).

Ainda não tenho a resposta sobre a questão da fluidez, dos rótulos... isso será uma discussão mais longa que talvez um dia eu consiga formular, mas sei, que com ou sem rótulos é preciso respeito e hoje também sei que o silêncio é uma das maiores formas de desrespeito que encontro.

De qualquer maneira o que mais me entristece hoje é perceber as diferentes formas de desrespeito que me deparo no dia-a-dia e que o meu armário destruído se transforma em um sistema de contaminação coletiva. E é neste ponto que quero chegar: o meu experimento atual:

Andei postando no facebook as mais diversas coisas sobre o meu cotidiano, e sobre questões sérias e políticas – importantes para mim – sobre orientação sexual, sexualidade... E percebi que muitos dos meus amigos no facebook não se manifestam quando o assunto é abertamente gay e é aí que entra a meu sistema de contaminação. O silêncio é arma de segurança de muitos deles. Como que se um “like” ou um “comment” automaticamente os colocaria na mesma categoria em que eu estou agora, portanto, ser gay é algo que se contamina, que pode passar de um para outro. Irônico, não?

Isso me faz lembrar de uma história que ouvi há muitos anos atrás de um jovem de ensino médio que ouviu de seu namorado que não andasse com ele na escola porque ele era muito gay... Sim, isso aconteceu e imagino que não tenha sido a única vez. Da mesma maneira que muitos dos gays que conheço tem vergonha de andar com gays afeminados para não serem “contaminados” pela “gayzisse” do outro. Triste, não? Mas verdade.

Assim como as críticas ao Félix e ao Niko são todas baseadas na afetação deles. Poderíamos criticar o roteiro, a história, mas querer apagar personagens gays só porque são afeminados é quase que o mesmo que querer se "deletar" do mundo real mantendo a sua vida online apática para que os outros finjam que acreditam na sua imagem... O Mateus Solano em uma entrevista para a Isto É, disse algo super interessante e que cabe a muitas pessoas que conheço: 

                   "Quando cai a máscara, quem sai do armário é a sociedade que está em volta do Félix e          a família dele. Eles que têm que sair do armário e aceitá-lo como ele sempre foi. Por mais que falasse que não era gay, ele gritava isso aos sete ventos".

E não percebemos - ou fingimos não perceber - que vamos nos deixando ser massacrados por um ideal, uma imagem de homem que tem nos oprimido (todos: homens, mulheres, crianças... sejam héteros, gays ou assexuais) por anos e anos, achando que ser assim - macho - é que é normal.

E estar fora do armário, entre todas as vantagens que me trouxe, a maior desvantagem não veio de um estranho na rua, no meu trabalho ou de um aluno. Veio dos meus amigos, daqueles que insistem no armário, no segredo ou na mentira que eles criaram para si mesmos: “isso é parte da minha vida privada e ninguém tem nada a ver com isso”. E dessa maneira, terminamos como cidadãos de segunda classe.

Espero não ouvir que as coisas são diferentes aqui, que temos mais liberdade... Há mais leis aqui, mas isso porque existe uma grande massa que lutou por aprovações de leis contra homofobia, algo que me parece fundamental neste momento. O que não há aqui como há no Brasil é medo. Medo que compartilhei por muito tempo. Mas quero tentar diminuir isso e para tanto há que se haja voz. E muitas. Um dos momentos mais importantes para mim foi aí no Brasil mesmo, ou melhor, na internet brasileira (se acontece no facebook acontece no Brasil mesmo, né?) quando a minha irmã escreveu um texto lindo sobre sexualidade para um conhecido homofóbico dela. 

Entre todas as justificativas acadêmicas que encontrei na minha pesquisa a que tenho tentado usar é em relação ao capitalismo tardio, ou seja, o subdesenvolvimento econômico "atrasou" a política do coming out no Brasil, mas não acho que essa seja a única razão. A política corporal e sexual do Brasil moldada em seus séculos de binarismo também cooperam para que a política americana do coming out não seja implantada no Brasil.  E não que o padrão americano seja o modelo para nós, pelo contrário. Porém, é preciso saber qual é a nossa iniciativa - e que não seja o silêncio! O preconceito ainda é forte mesmo entre os gays e o apego (na falta de uma palavra melhor) com as vantagens que a vida no armário proporciona dificulta o coming out no Brasil. Porém o Brasil já é um país desenvolvido e se o capitalismo propicia a vida LGBTT,o que ainda impede hoje nos grandes centros que exista uma política mais massiva de coming out? Qual é ainda o nosso medo?

E enquanto me preparo para mais uma temporada em Nova York ensaio olhar nos olhos desses meus amigos e perguntar “E aí? Vale a pena ser meu amigo?” Não podemos esperar para que os outros façam. Nós teremos que fazer e eu gostaria de dizer algo que ainda não foi dito, mas não há novidade nisso. Estamos um pouco atrasados, mas podemos seguir nosso rumo da nossa maneira. Ter um dia para andar de mão dada na rua não é mais suficiente. Temos que fazer isso todos os dias. É possível ser advogado, médico, professor, pediatra, psicólogo e ser gay (ah essa tal de identidade...). Já passamos a metade do caminho, mas a verdade é que o caminho é nosso e não dos outros. E nós que temos que trilhá-lo e a beleza de tudo isso é que podemos fazer em português mesmo, na nossa língua e cometer os nossos erros e comemorar os nossos acertos. Ainda temos tempo. Há muito tempo.